quinta-feira, 17 de julho de 2014

O Departamento de Projetos de IPS nos Anos 90

Conheci Roberto Sávio em 1985, em Brasília, em um almoço oferecido pelo jornalista Guy de Almeida, em sua casa, em um sábado ensolarado de maio. Guy, à época, era o Chefe da Casa Civil do Governo do Distrito Federal, no início da Nova República, durante os primeiros anos da redemocratização do Brasil, após duas décadas de ditadura militar.
Guy de Almeida havia sido jornalista da Inter Press Service (IPS) em Lima, Peru, no período em que foi exilado político, consequência de sua participação na luta pela democracia.
Sávio encantou a todos com sua visão de mundo, sua luta por uma nova ordem informativa e seu conhecimento da situação política de cada região e detalhes de cada país, com pitorescas observações sobre os líderes mundiais. Preocupava-se com a situação da África, relegada ao esquecimento da comunidade internacional e com a América Latina, cada vez mais fora do centro político.
Sávio formulava e defendia com ardor as posições do terceiro-mundismo, linha política muito próxima dos grupos mais à esquerda do cenário político brasileiro e mostrava o papel que IPS cumpria. Fora IPS a primeira agência a distribuir na Europa um texto escrito na América Latina, sobre a realidade deste continente. 
A agência se propunha e dava voz aos países do hemisfério sul e dentro desses aos grupos sociais não hegemônicos.
O Brasil seguia aprofundando seu processo democrático, com a primeira eleição direta para a Presidência da República, em 1989. Os grupos que haviam militado na luta democrática dividiram-se entre 4 candidaturas e foram superadas pelo governador Collor de Mello, líder de um pequeno estado do nordeste brasileiro.
Apoiei e trabalhei pelo Dep. Ulysses Guimarães, então presidente do maior partido de oposição aos militares e que havia liderado a Assembleia Nacional Constituinte. Ulysses teve uma votação pequena e voltou ao cenário político como um dos líderes da oposição, ao lado de Lula, Brizola e Mario Covas, também derrotados.
No carnaval de 1991 recebo um telefonema de Guy de Almeida, nesta época, Diretor Geral do Technological Information Pilot System (TIPS), em Roma. O TIPS é um projeto idealizado por Roberto Sávio, financiado pelo PNUD, que buscava favorecer a transferência tecnológica para empresas localizadas nos países do terceiro-mundo, notadamente as pequenas e médias organizações.
Clélia e Guy de Almeida acabavam de ganhar sua primeira neta e desejavam retornar para a cidade de Belo Horizonte, próximos dos filhos. Para quem já havia sido exilado político e sofrido as agruras da saudade, este era um desejo mais do que natural. Guy buscava um sucessor na direção do TIPS  e perguntava de meu interesse.
Para mim e Graça, minha esposa, e para nossos pequenos filhos, era a oportunidade única de unir três grandes vontades: trabalhar em um processo movido por uma grande ideia, ser liderado por um grupo de pessoas excepcionais e viver na Itália, dando um tempo ao Brasil de Collor de Mello.
O processo de seleção acabou sendo mais complexo, pois a IPS aproveitou a oportunidade para recrutar um Diretor para seu Departamento de Projetos, profissionais com qualificações semelhantes.
A mim foi oferecido a oportunidade de dirigir o Departamento de Projetos da agência de notícias Inter Press Service, com sede na Via Panisperna, bem na frente do local onde os jovens físicos italianos colaboraram com Enrico Fermi para a descoberta dos néutros lentos que permitiu a construção dos primeiros reatores atômicos e da bomba.
IPS era uma espécie de anti-bomba do bem, a favor da paz, da inclusão social e da solidariedade humana.
Eu estava definitivamente no lugar certo.
O Departamento de Projetos era uma estrutura pequena, responsável por usar a agência de notícias para desenvolver projetos de comunicação social de interesse de organismos  internacionais, governos nacionais e organizações não governamentais.
Esses projetos buscavam estabelecer fluxos informativos, de dupla mão, entre grupos sociais com pouco interesse dos veículos da grande imprensa e tratavam de temas globais, que igualmente atraíam pouco o jornalismo tradicional. Os projetos de IPS propiciam canais de relacionamentos entre o grupos do hemisfério sul e treinam pessoas para se comunicar melhor.
Na prática, o Departamento de Projetos levantava recursos para que a IPS fizesse a sua particular subversão à ordem informativa tradicional, caminhando ao contrário dos que majoritariamente falam do norte para o sul e dão voz a quem já a tem de sobra, os setores mais poderosos da sociedade.
O Departamento de Projetos, no início dos anos 90, era formado por um grupo multinacional bem interessante. Jacqueline XXXXX, uma jovem senhora hindu, Daniela Vetter, jovem chilena que viveu sua infância e adolescência na Alemanha e eu, brasileiro. Tínhamos um trabalho articulado tanto com o Diretor de Planejamento da IPS, o britânico Vic Suttom como com o Diretor de Relacionamento com a Sociedade Civil, o holandês-brasileiro John Schlanger.  
Nesta época, a agência trabalhou em várias dezenas de projetos, em todos os continentes, acompanhando os temas de interesse global como infância, meio-ambiente, direitos humanos, população, cultura e desenvolvimento econômico dos países do sul.
Iniciamos a cobrir as grandes conferências internacionais organizadas pela ONU e que definiram os limites da cooperação internacional dos anos seguintes.
O jornal Terra Viva e o projeto que daí decorreu nasceu às vésperas da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED) realizado no Rio de Janeiro entre 3 e 14 de junho de 1992, conhecida como o The Earth Summit.
Este foi o projeto mais ousado que fizemos. Tinha como objetivo cobrir diariamente a grande conferência global sobre o meio ambiente e desenvolvimento e o resultado foi um sucesso e fez história.
O Terra Viva foi publicado no Rio de Janeiro, em duas edições diárias, uma em inglês e outra em espanhol. Com recursos levantados das agências da ONU, da Comunidade Europeia e de alguns países que compunham o grupo de amigos de IPS a agência levou para o Brasil um grupo multinacional de jornalistas que foi capaz de cobrir, editar e distribuir as edições do jornal diário durante os 12 dias da conferência da UNCED.
Depois desta experiência e com a coragem de quem passou por cima de enormes dificuldades para publicar Terra Viva no Brasil, repetimos o projeto nas conferencias sobre Direitos Humanos, em Viena, sobre População, no Cairo, sobre Mulheres, em Pequim e sobre Mulheres na Agricultura, em Roma.
Minha participação no dia a dia da IPS teve o seu auge no Rio de Janeiro, durante a publicação de Terra Viva e também foi o início de minha volta para o Brasil.
No dia que chegamos no Rio de Janeiro com a equipe de IPS, no último domingo de maio de 1992, a Revista Veja publicava uma matéria de capa com Pedro Collor denunciando o seu irmão, presidente do Brasil, por crime de corrupção. Esta matéria dava início a um processo político que terminaria em 29 de dezembro de 1992 com o impeachment de Collor e o início do governo do Presidente Itamar Franco.
Do novo governo participavam vários bons amigos que insistiam em me convidar para a experiência de construir, enfim, o país pelo qual tanto lutamos.
Eu saí do dia a dia de IPS em julho de 1993 mas IPS nunca mais saiu de mim e nem sairá.
Depois disto, participei de um projeto da agência no Brasil, junto ao PNUD e com Roberto Sávio e Mário Lubetkin do processo de sucessão do Diretor Geral de IPS, quando Roberto transformou-se em nosso Presidente Eméritus e Mário em Diretor Geral.
Meu ciclo em IPS completou-se quando, alguns anos depois, meu filho Felipe Seligman, após laurear-se como jornalista, fez um estágio no escritório de IPS em New York, coordenado pelo chefe do escritório o grande jornalista Thalif Deen. Seguindo uma velha tradição indígena, o pai só completa sua tarefa quando ensina o ofício a seu filho. Ensinar eu não poderia, mas mostrar-lhe o caminho ipsico eu fiz.

 (*) Artigo publicado no livro "Os jornalistas que reviraram o mundo"



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