quinta-feira, 17 de julho de 2014

A tragédia foi na minha casa

A tragédia foi na minha casa. No lugar onde vivi e passei a maior parte de minha juventude.  Pior. Fomos nós, eu e minha turma de amigos que fomos atingidos, alcançados com 40 anos de atraso. Minha identidade com as vítimas é absoluta.
Na Rua dos Andradas, do lado de lá da Avenida Rio Branco, onde houve a tragédia, ficava a revenda Brahma do seu Ives, pai do Beto, meu colega de aula.
Em frente ao local do incêndio, onde a televisão mostrava um supermercado, ficava o Ginásio Hugo Taylor, no prédio que outrora foi a Escola de Artes e Ofícios da Associação dos Empregados da Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Lá eu fui escoteiro, liderado pelo Irmão Luiz, que me ensinou a ser solidário e olhar para a natureza com respeito e atenção.
Pouco acima, uma quadra se tanto, ficava o Moby Dick, o bar onde algum tempo depois nos encontrávamos para derrubar a ditadura, construir um mundo novo e amar, amar muito, nós que nos amávamos tanto!
Santa Maria, minha querida cidade, sempre foi motivo de um sincero, profundo e verdadeiro orgulho.
Cidade repleta de jovens, primeira universidade federal fora de uma capital, vários centros de ensino, formadora de gente boa e solidária, usina de sonhos e vontade de mudar para melhor a nossa sociedade e o nosso Brasil.
Desde sábado o Brasil não para de falar de Santa Maria, mas para isso foi preciso que centenas de jovens fossem tragicamente mortos.
Mortos, na minha casa!
Estou profundamente triste, abatido e comovido, a melhor palavra que me ocorre para contrapor ao orgulho que sempre tive.
Não consigo e não quero entrar no jogo de procurar culpados e responsáveis. Não quero respostas fáceis, definitivas e provavelmente erradas. Agora é hora de nos fazermos perguntas.
Os fatos da semana seguinte ao horror mostram que a tragédia do último sábado de janeiro poderia ter ocorrido em qualquer dia, em qualquer cidade e em quase todos os lugares onde a juventude se diverte.
 Os locais que fecharam por luto, em todo o Brasil, homenagearam as vítimas, mas também buscaram tempo para corrigir problemas, pois finalmente serão fiscalizados.
Porque não foram fiscalizados antes e com grande rigor? Porque nada é fiscalizado com rigor? Porque não gostamos de rigor?
Será que o hedonismo é o valor absoluto de nossa sociedade?
Será que os direitos da pessoa humana, pelo qual tantos lutaram, estão resumidos a um único artigo: eu mereço. E com um parágrafo único: revogam-se disposições em contrário.
Será que o poder público e o interesse privado se irmanaram para atender a esse direito único e fazem tábula rasa dos rigores no cumprimento de suas obrigações? Será que todos acreditam que tais rigores são indesejáveis e caretas, e certamente impostos pelos que querem estragar a festa?
Temo que a maioria não aprecie um poder público rigoroso, mas por outro lado, e contraditoriamente confia muito, e até demais, no resultado de sua atuação.
Penso, com triste ironia, em perguntas que provavelmente seriam feitas se essa tragédia tivesse sido evitada pela proibição das causas mais aparentes.
Fechar o local onde nos divertimos, depois de ralar tanto? Proibir o uso de efeitos pirotécnicos, em um ambiente fechado, que tornará o evento ainda mais top? Limitar o número de frequentadores na capacidade máxima vai atrapalhar e a festa não vai bombar?
Quem defenderia, na prática, essas atitudes? Um fiscal da prefeitura? Um bombeiro da Brigada Militar? Será que delegamos a segurança de nossos jovens a esses profissionais? Temos tanta confiança neles que nem queremos saber se estão fazendo a coisa certa?
Não há razão para supor que os lugares de diversão pública sejam seguros. Poucos perguntam se os serviços de fiscalização que devem ser feitos estejam sendo prestados.
Não sei quais foram os responsáveis pela tragédia que enlutou famílias de inúmeros conhecidos nossos e toda a gente de minha querida Santa Maria.
Tenho uma filha que gosta de balada e a frequenta com seu namorado. Eu nunca perguntei para eles sobre segurança. Quando em Santa Maria, no último dezembro, semanas antes da tragédia eles programaram ir se divertir na Kiss.  Normal, perfeitamente normal.
Como Ernest Hemingway eu sei por quem os sinos dobram, é por todos nós. Somos ao mesmo tempo vítimas e um pouco responsáveis pela desgraça e o horror que se abateu sobre esses meninos e meninas e suas famílias.
Temos que responder a essas perguntas e mudar de atitude para que a morte deles não tenha sido em vão.


(*) Escrito na semana da trajédia da Boite Kiss em Santa Maria, Rio Grande do Sul

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