A tragédia foi
na minha casa. No lugar onde vivi e passei a maior parte de minha
juventude. Pior. Fomos nós, eu e minha turma de amigos que fomos atingidos, alcançados com 40 anos de atraso. Minha identidade com as vítimas é
absoluta.
Na Rua dos Andradas, do lado de lá da Avenida Rio Branco, onde houve a tragédia, ficava a revenda Brahma do seu Ives, pai do Beto,
meu colega de aula.
Em frente ao local do incêndio, onde a televisão mostrava um supermercado, ficava o Ginásio Hugo Taylor, no prédio que outrora foi a Escola de Artes e Ofícios da Associação
dos Empregados da Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Lá eu fui escoteiro, liderado pelo Irmão Luiz, que me ensinou a ser solidário e olhar para a natureza com respeito e atenção.
Pouco acima, uma quadra se tanto, ficava o Moby Dick, o
bar onde algum tempo depois nos encontrávamos
para derrubar a ditadura, construir um mundo novo e amar, amar muito, nós que nos amávamos
tanto!
Santa Maria, minha querida cidade, sempre foi motivo de
um sincero, profundo e verdadeiro orgulho.
Cidade repleta de jovens, primeira universidade federal
fora de uma capital, vários
centros de ensino, formadora de gente boa e solidária, usina de sonhos e vontade de mudar para melhor a
nossa sociedade e o nosso Brasil.
Desde sábado o
Brasil não para de falar de Santa Maria, mas
para isso foi preciso que centenas de jovens fossem tragicamente mortos.
Mortos, na minha casa!
Estou profundamente triste, abatido e comovido, a melhor
palavra que me ocorre para contrapor ao orgulho que sempre tive.
Não consigo
e não quero entrar no jogo de procurar
culpados e responsáveis. Não quero respostas fáceis,
definitivas e provavelmente erradas. Agora é hora de nos fazermos perguntas.
Os fatos da semana seguinte ao horror mostram que a tragédia do último sábado de janeiro poderia ter ocorrido em qualquer dia, em
qualquer cidade e em quase todos os lugares onde a juventude se diverte.
Os locais que
fecharam por luto, em todo o Brasil, homenagearam as vítimas, mas também
buscaram tempo para corrigir problemas, pois finalmente serão fiscalizados.
Porque não foram
fiscalizados antes e com grande rigor? Porque nada é fiscalizado com rigor? Porque não gostamos de rigor?
Será que o
hedonismo é o valor
absoluto de nossa sociedade?
Será que os
direitos da pessoa humana, pelo qual tantos lutaram, estão resumidos a um único
artigo: eu mereço. E com
um parágrafo único: revogam-se disposições em contrário.
Será que o
poder público e o interesse privado se
irmanaram para atender a esse direito único
e fazem tábula rasa dos rigores no cumprimento
de suas obrigações? Será que todos acreditam que tais rigores são indesejáveis e
caretas, e certamente impostos pelos que querem estragar a festa?
Temo que a maioria não aprecie um poder público rigoroso, mas por outro lado, e contraditoriamente
confia muito, e até demais,
no resultado de sua atuação.
Penso, com triste ironia, em perguntas que provavelmente
seriam feitas se essa tragédia
tivesse sido evitada pela proibição das
causas mais aparentes.
Fechar o local onde nos divertimos, depois de ralar
tanto? Proibir o uso de efeitos pirotécnicos,
em um ambiente fechado, que tornará o evento
ainda mais top? Limitar o número de
frequentadores na capacidade máxima vai
atrapalhar e a festa não vai
bombar?
Quem defenderia, na prática, essas atitudes? Um fiscal da prefeitura? Um
bombeiro da Brigada Militar? Será que
delegamos a segurança de
nossos jovens a esses profissionais? Temos tanta confiança neles que nem queremos saber se estão fazendo a coisa certa?
Não há razão para
supor que os lugares de diversão pública sejam seguros. Poucos perguntam se os serviços de fiscalização
que devem ser feitos estejam sendo prestados.
Não sei
quais foram os responsáveis pela
tragédia que enlutou famílias de inúmeros
conhecidos nossos e toda a gente de minha querida Santa Maria.
Tenho uma filha que gosta de balada e a frequenta com seu
namorado. Eu nunca perguntei para eles sobre segurança. Quando em Santa Maria, no último dezembro, semanas antes da tragédia eles programaram ir se divertir na Kiss. Normal, perfeitamente normal.
Como Ernest Hemingway eu sei por quem os sinos dobram, é por todos nós. Somos
ao mesmo tempo vítimas e
um pouco responsáveis pela
desgraça e o horror que se abateu sobre esses
meninos e meninas e suas famílias.
Temos que responder a essas perguntas e mudar de atitude
para que a morte deles não tenha
sido em vão.
(*) Escrito na semana da trajédia da Boite Kiss em Santa Maria, Rio Grande do Sul
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